HUMANIZEMOS KARDEC

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Seria muito importante que todos os que nos dizemos espíritas conhecêssemos um pouco mais sobre a vida de Allan Kardec, principalmente sua vida pessoal. Isso é possível mediante a leitura das biografias que já foram escritas a seu respeito, os relatos que ele próprio fez na Revista Espírita e também por meio do que declararam os seus contemporâneos, aqueles que o conheceram de perto.

Esse conhecimento do homem nos facultaria maior entendimento do Codificador, pois foram as suas características como ser humano, adquiridas ao longo de inúmeras reencarnações, que o credenciaram a tornar-se o grande e nobre missionário que tanto admiramos.

Quando tomamos contato com algumas destas informações, sentimos Allan Kardec como um companheiro muito próximo, amigo, atento, sensível à dor alheia e aos problemas dos que estavam à sua volta. Acrescentamos doçura, afabilidade, sentimento caritativo, bom humor mesmo ao vulto sério e perquiridor, cognominado por Camille Flammarion como “o bom senso encarnado”.

Segundo Léon Denis1, Allan Kardec tinha ido passar alguns dias em casa de amigos na cidade de Touraine e estes haviam alugado uma sala para ouvir o mestre dissertar sobre o Espiritismo. Pediram autorização junto à Prefeitura para a realização da reunião, pois uma lei do Império francês impedia qualquer concentração com mais de vinte pessoas. Como o pedido não foi deferido, a reunião foi transferida para o jardim da casa do Sr. Rebondin e o próprio Léon Denis, ainda jovem, ficou encarregado de prevenir os convidados, indicando-lhes o local correto.

Mas o que marca neste episódio é a forma como Denis descreve o jeito de Allan Kardec responder às perguntas. Segundo ele, o Codificador as respondia com fisionomia sorridente. No dia seguinte, quando Denis retorna ao local para visitar o mestre, encontra-o sobre um pequeno banco, junto a uma grande cerejeira, colhendo, descontraidamente, frutos que jogava para sua esposa, Amélie-Gabrielle Boudet.

 Não param por aí as singulares e humanas facetas de Allan Kardec. Quando este desencarna, quatro pessoas discursam no enterro do seu corpo. Inicialmente, o Vice-Presidente da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, Sr. Levent; em seguida, Camille Flammarion (discurso que ficou mais conhecido), depois Alexandre Delanne e, por fim, o Sr. E. Muller. Todos eles mencionam alguns traços do caráter do homem Kardec. O Sr. E. Muller, falando em nome da viúva, diz que ao longo dos trinta e sete anos de felicidade que Amélie Boudet desfrutou ao lado do marido, pôde constatar a sua pureza de costumes, sua honestidade absoluta e seu sublime desinteresse.2

Noutra ocasião, numa reunião realizada em 9 de abril de 1869, o já citado Sr. Levent refere-se a Kardec como alguém que possuía zelo infatigável em seus trabalhos, desinteresse absoluto, pela total abnegação de si mesmo, junto a uma constante perseverança na direção da sociedade que presidiu até a desencarnação. 3

Mas são as falas de Anna Blackwell, tradutora de algumas obras de Kardec para a língua inglesa, e de Pierre-Gaëtan Leymarie que fornecem o tom que desejamos imprimir a este artigo. Tanto Leymarie quanto Anna Blackwell conheceram de perto o Codificador e puderam, como poucos, destacar seus principais traços. Vamos encontrá- los na bela obra de Zêus Wantuil e Francisco Thiesen, publicada em três volumes pela Federação Espírita Brasileira4. Anna afirma que pelas feições Allan Kardec “mais parecia alemão que francês. Era ativo e tenaz, mas de temperamento calmo, precavido e realista até quase à frieza, céptico por natureza e por educação, argumentador lógico e preciso, e eminentemente prático em suas idéias e ações, distanciado assim do misticismo que do entusiasmo... Ponderado, lento no falar, sem afetação, com inegável dignidade, resultante da seriedade e da honestidade, traços distintivos do seu caráter. (...)  recebia amavelmente os numerosos visitantes que acorriam de todas as partes do mundo, para conversar com ele (...) com os quais falava franca e animadamente. Em algumas ocasiões apresentava fisionomia radiante, com um sorriso agradável e prazenteiro (...).”

O depoimento de Leymarie é ainda mais intimista, pois recebia Kardec em sua casa, bem como o visitava em sua residência. Afirma que o mestre freqüentemente vinha vê-lo e “se distraía a contar anedotas de alto nível, às quais não faltavam ditos gauleses.” 4

Conta ainda Leymarie que, “nos últimos dias de sua vida, convidava amigos para jantar em sua Vila Ségur” e “depois de haver debatido os pontos mais difíceis e mais controvertidos da Doutrina, esforçava-se por entreter os convidados. Mostrava-se expansivo, espalhando bom humor em todas as oportunidades”.4

Alguns espíritas vão estranhar Allan Kardec contando anedotas, mas este estranhamento é muito saudável, pois nos leva a pensar que o nosso é um movimento de vivos, como preconizava o grande espírita brasileiro Leopoldo Machado. Quem encontra um tesouro se felicita com seu achado. A questão é que trazemos os atavismos das religiões por onde perambulamos, e riso, alegria, bom humor, eram sinônimos de vulgaridade e até de coisas diabólicas.

Vez por outra ouvimos algumas exposições doutrinárias onde são narradas anedotas agradáveis, reflexivas, algumas, até mesmo contadas por Chico Xavier. É um grande erro associarmos o riso sincero, descontraído, mesmo na intimidade do Centro Espírita, a algo de natureza vulgar e obsessiva. Não nos referimos ao deboche, ao sarcasmo, à depreciação de quem quer que seja.

Entendemos que há momentos e reuniões que pedem um pouco mais de recolhimento e silêncio, mas precisamos tomar cuidado com os exageros, pois se a disciplina é necessária, em excesso ela não educa, antes violenta.

Sem alegria natural e espontânea nosso Movimento acabará repetindo o formalismo das religiões tradicionais. Nem a criança nem o jovem encontram prazer num ambiente que seja permanentemente silencioso e contemplativo.

 Ao que nos parece, Allan Kardec era sério no sentido mais amplo e profundo da palavra, por isso mesmo tinha uma permanente jovialidade.

 A seriedade malcompreendida conduz-nos a um envelhecimento precoce, tornando-nos permanentemente insatisfeitos, e o que é pior, implicantes, querendo que todos se moldem ao nosso jeito de ser.

Quando os restos mortais de Allan Kardec são transferidos do Cemitério Montmartre para o Cemitério do Père-Lachaise, Alexandre Delanne, que fora seu amigo íntimo, recebe o convite para discursar e impossibilitado por motivo de doença, envia uma carta para ser lida na ocasião. Nesta carta ele revela o caráter diamantino e principalmente o grande coração, o homem benevolente que fora Kardec. Narra ele que indo com um amigo até a casa de Kardec, este companheiro passou a contar para ambos o sofrimento de um ancião que, vivendo sob dificeis provações, não tinha roupas adequadas para o frio e agasalhava seus pés em tamancos de madeira rudemente trabalhados. Mas este homem, longe de lamentar-se e com vergonha de pedir algo a alguém, resignava-se lendo um livro espírita que lhe infundia grande consolo e resignação, trazendo-lhe esperanças de um futuro melhor. Delanne cita que neste instante viu rolar dos olhos de Allan Kardec uma lágrima de compaixão e, confiando ao companheiro algumas moedas de ouro, pediu que este as levasse para prover as necessidades do ancião. Não satisfeito, solicitou-lhe voltar no dia seguinte, pois sendo o ancião espírita, Kardec prometia providenciar algumas obras que pudessem facilitar sua instrução, já que o mesmo não dispunha de recursos para adquiri-las.

Nesta mesma carta, Delanne narra também o episódio em que uma família fora despejada e conduzida à extrema miséria. Sabendo do ocorrido, Kardec, mesmo sem conhecê-los, sem cogitar se eram espíritas ou não, forneceu os recursos para tirá-los da miséria, evitando, inclusive, o suicídio de um pai de família.

 Citando, ainda, outros fatos que revelam a alma bondosa deste homem notável, retiramos um trecho que, não sendo o desfecho da carta, ao menos resume bem o teor de tudo o que Alexandre Delanne quis narrar:

“Não mais pararia eu de falar, se tivesse necessidade de vos lembrar os milhares de fatos desse gênero, conhecidos tão-somente por aqueles que Allan Kardec socorreu; não amparava apenas a miséria, levantava, também, com palavras confortadoras, o moral abatido. Jamais, porém, sua mão esquerda soube o que dava a direita.” 5

Divaldo Franco6, citando Anna Blackwell, comenta que para ela, o Codificador tinha sua ponta de vaidade, como a pêra que usava junto com o bigode, a fim de esconder uma verruga.

 Vale a pena pensarmos na dimensão humana de Allan Kardec, repensando, por extensão, a maneira como nos relacionamos com médiuns, expositores, escritores e dirigentes espíritas.

Humanizar Kardec significa perceber seus sentimentos, sua dimensão humana, sua sensibilidade. É admirar sua racionalidade, mas entender que esta estava a serviço de sua generosidade, a serviço de Jesus.

 Portanto, trabalhemos e trabalhemo-nos, modificando nossas idéias, ampliando nossos conhecimentos, sem perder de vista a qualidade das nossas relações, o teor dos nossos sentimentos, tal como nos ensinou em sua grandiosa simplicidade o mestre Allan Kardec.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1 LUCE, Gaston. Léon Denis o Apóstolo do Espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 1989, p. 26 e 27.

2 WANTUIL, Zêus e THIESEN Francisco. Allan Kardec. Rio de Janeiro: FEB, 1988, vol. III, p. 126.

3 Idem, ibidem. p. 129.

 4 Idem, ibidem. p. 130-131.

 5 Idem, ibidem. p. 138.

 6FRANCO, Divaldo. Diálogo com dirigentes e trabalhadores espíritas. São Paulo: USE, 1995,  

 

Fonte: revista Reformador, da FEB, de Outubro de 2004

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