Nas questões 481 a 483 de O Livro dos Espíritos, Kardec tratou de um tema pouco estudado entre os espíritas: “os convulsionários”. Para entendê-lo melhor, é preciso conhecer um pouco da história do diácono[1] jansenista François Pâris, cujo túmulo era visitado por peregrinos que ali eram tomados por convulsões, daí o nome “convulsionários”. Os jansenistas eram adeptos da doutrina religiosa sobre a graça, o livre-arbítrio e a predestinação, muito difundida no seio do Catolicismo, na França, entre os séculos XVII e XVIII, seguidores do bispo e teólogo católico holandês Cornélio Jansênio (1585-1638). Aos mais curiosos, recomendamos a leitura do excelente artigo sob o título “Convulsionários e sua história”,[2] publicado na revista Reformador, de outubro de 1985, isso porque, no presente trabalho, daremos ênfase a outros aspectos singulares despertados por essa mesma questão.
Na Revista Espírita,[3] Kardec reproduz um fato que se tornou símbolo do jansenismo, o qual auxilia a compreender melhor a origem dos convulsionários:
“Notícia – François Pâris, famoso diácono de Paris, morto em 1727, aos 37 anos de idade, era o filho mais velho de um conselheiro do Parlamento, a quem naturalmente devia suceder no cargo. Preferiu, no entanto, abraçar a carreira eclesiástica. Após a morte do pai, deixou os bens para o irmão e, durante algum tempo, ensinou catecismo na paróquia de São Cosme, encarregando-se da direção dos clérigos e fazendo-lhes conferências. O Cardeal de Noailles, a cuja causa estava ligado, quis nomeá-lo cura dessa paróquia, mas sobreveio um obstáculo imprevisto. O abade Pâris consagrou-se inteiramente ao retiro. Depois de ter experimentado diversos eremitérios, confinou-se numa casa do subúrbio de São Marcelo. Lá se entregou sem reserva à prece, às práticas mais rigorosas de penitência e ao trabalho manual. Fazia meias para os pobres, que considerava como seus irmãos; morreu nesse asilo. (...)
Tendo seu irmão mandado erigir-lhe um túmulo no pequeno cemitério de Saint-Médard, os pobres socorridos pelo piedoso diácono, alguns ricos que ele havia edificado e algumas mulheres que tinha instruído para lá se dirigiam, a fim de fazer preces. Houve curas que pareceram maravilhosas e convulsões que foram consideradas perigosas e ridículas. A autoridade[4] viu-se enfim obrigada a fazer cessar esse espetáculo, determinando o fechamento do cemitério no dia 27 de janeiro de 1732. Então os mesmos entusiastas foram provocar suas convulsões em casas particulares. Na opinião de muita gente, o túmulo do diácono Pâris foi o túmulo do jansenismo. Mas algumas pessoas julgaram ver o dedo de Deus, tornando-se mais ligadas a uma seita capaz de produzir tais maravilhas. Há diferentes histórias desse diácono, do qual talvez jamais teriam falado se não o houvessem querido transformar num taumaturgo.[5]
Entre os fenômenos estranhos apresentados pelos Convulsionários de Saint-Médard citam-se: a faculdade de resistir a golpes tão terríveis que os corpos deveriam ficar triturados; a de falar línguas ignoradas ou esquecidas; um desdobramento extraordinário da inteligência: os mais ignorantes entre eles improvisaram discursos sobre a graça, os males da igreja, o fim do mundo, etc.; a faculdade de ler o pensamento; postos em contato com os doentes, apresentavam dores no mesmo local daqueles que os consultavam; (...)
A insensibilidade física produzida pelo êxtase deu lugar a cenas atrozes. A loucura chegou a ponto de realmente crucificarem vítimas infelizes, a fazer-lhes sofrer todos os detalhes da Paixão do Cristo. E estas vítimas (...) solicitavam as terríveis torturas, designadas entre os Convulsionários pelo nome de grande socorro.
A cura dos doentes se operava pelo simples toque da pedra tumular ou pela poeira que encontravam à sua volta e que tomavam com alguma bebida ou aplicavam sobre as úlceras. Bastante numerosas, estas curas foram atestadas por milhares de testemunhas, muitas das quais são homens de ciência, no fundo incrédulos, que registraram os fatos sem saber a que os atribuir.” (Destaquei).
Enfim, convulsionários era o nome pelo qual eram conhecidas, no passado, as pessoas que se entregavam a certos tipos de práticas, por efeito do magnetismo ou da exaltação religiosa ou do pensamento. Os convulsionários davam-se a histerias, que degeneravam em crueldades e indecência, chegando muitos deles a se autoflagelarem em espetáculos públicos, em meio aos quais eclodiam, também, certos fenômenos, entre eles a faculdade de ler pensamentos e a insensibilidade à dor. Como eram Espíritos de pouca elevação aqueles que concorriam para tais fatos, as pessoas que a eles se entregavam, invigilantes e permissivas, favoreciam o contágio coletivo no seio daqueles que eram simpáticos a tais idéias, isto é, que se encontravam na mesma sintonia.
Além dos convulsionários de Saint-Médard, Kardec menciona, na Revista Espírita, de janeiro de 1868,[6] um artigo publicado em Monde Illustré, de 19.10.1867, sobre os árabes da tribo dos Aïssaouas, seita religiosa espalhada na África, cujo articulista testemunhou, na Argélia, diversos eventos, em que os adeptos, submetidos às mais cruéis mortificações corporais, a tudo suportavam sem sentir qualquer dor.
Em outro relato jornalístico (“Petit Journal”, de 30.09.1867), mencionado no mesmo número da Revista Espírita, são relatados vários casos, entre eles os dos engolidores de brasas acesas, os dos comedores de vidro e de serpentes, fenômenos esses produzidos pelos integrantes da “Companhia Aïssaoua” (corpo de balé muçulmano), que se apresentou em Paris, no teatro do Campo de Marte, e depois na sala da arena atlética da rua Le Peletier, espetáculo que também recebeu a cobertura do “Moniteur”, de 29.07.1867. Graças à enorme repercussão, os coadjuvantes desses fenômenos ficaram conhecidos como os “convulsionários da Rua Le Peletier”.
Ressalvando a questão cultural e outras motivações aqui não abordadas, relativamente a esses costumes, creio não haver exagero algum em classificar estas e outras condutas extremistas no rol do fanatismo, que, sem dúvida, é algo deplorável e leva as pessoas, muitas vezes, a assumirem comportamento mórbido.
O fanatismo existe em todas as religiões e até fora delas, inclusive no esporte e na política. De triste lembrança é o episódio ocorrido na Guiana, em 1978, quando, induzidos por um fanático, cerca de 900 pessoas suicidaram-se, estarrecendo o mundo. Em busca de solução mágica dos problemas, muitos indivíduos sujeitam-se a ser enganados, na vã crença de que as leis divinas podem ser revogadas ao seu bel capricho.
Quando o homem se conduz com fanatismo e com fins escusos ou fúteis, atrai a presença de Espíritos inferiores, que podem gerar lamentáveis desvirtuamentos, abrindo brechas ao charlatanismo, que consiste na exploração da credulidade pública, por meio de engodos e mentiras, circunstância que contribui muito para fomentar desequilíbrios.
O charlatanismo sempre existiu, não só nas religiões, como também em todos os segmentos da sociedade, inclusive nos meios científicos, mas nem por isso devemos tachar todos os fenômenos de fraudulentos pelo simples fato de que alguém abusou das coisas mais respeitáveis. Kardec lembra que o desinteresse absoluto, na prática do bem, é a maior garantia contra o charlatanismo, e recomenda, enfático, aos espíritas:
“92. Entre os adeptos do Espiritismo, encontram-se entusiastas e exaltados, como em todas as coisas; são, em geral, os piores propagadores, porque a facilidade com que, sem exame, aceitam tudo, desperta desconfiança.
O Espírita esclarecido repele esse entusiasmo cego, observa com frieza e calma, e, assim, evita ser vítima de ilusões e mistificações. À parte toda a questão da boa-fé, o observador novato deve, antes de tudo, atender à gravidade do caráter daqueles a quem se dirige.”[7]
Apesar dos aspectos bizarros dos fenômenos relatados, eles permitem tirar conclusões interessantes sobre a independência entre o espírito e a matéria, como, por exemplo, nos casos da insensibilidade à dor.[8] Muitos cristãos, levados ao martírio, nos circos romanos, suportaram heroicamente as torturas físicas e psicológicas, “porque o brando anestésico das potências divinas lhes balsamizou o coração dorido e dilacerado no tormentoso momento”.[9] O Espiritismo oferece explicações racionais que retiram de tais eventos a crença no maravilhoso e no milagre, mostrando-os como fatos regidos por leis naturais, muitas vezes desconhecidas das ciências ordinárias.[10]
A fé cega cada vez mais vem cedendo espaço à fé raciocinada, que oferece ensanchas de cultivarmos os bons sentimentos por meio do estudo, do discernimento e da prática do bem, que nos preservam da exposição ao ridículo e dos extremismos que nos alheiam da realidade, do bom senso e do equilíbrio.
[1] Eclesiástico abaixo dos sacerdotes e que tinha por função ajudar o celebrante no altar.
[2] SOUZA, Edemilton Cabral de. Ob.cit., nº 1.879. Rio de Janeiro: FEB, p. 21-23.
[3] Ob. cit. Trad. de Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2004. “Os Convulsionários de Saint Médard”, p. 455-457.
[4] Representante da administração do Cemitério de Saint-Médard, em Paris.
[5] Taumaturgo: pessoa a quem se atribui a autoria de milagres.
[6] Ob. cit. Trad. de Evandro Noleto Bezerra. 1ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005. “Os Aïssaouas”, p. 37-43.
[7] KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. 37ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1995. Cap. II. “Charlatanismo”, p. 182-183.
[8] Ver, especificamente, a nota de KARDEC à questão 483 de O Livro dos Espíritos.
[9] XAVIER, Francisco C. Há 2000 anos. Pelo Espírito Emmanuel, 25ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1990. Cap. V, segunda parte: “Nas catacumbas da fé e no circo do martírio”, p. 327.
[10] KARDEC, Allan. A Gênese. 34ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1991. Cap. XIV, item 29. “Catalepsia – Ressurreições”, p. 293 e 294.