Sonambulismo, dupla vista e êxtase

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O sonambulismo, a dupla vista e o êxtase[i] constituem gradações da faculdade de desdobramento da alma ou Espírito, que possibilitam, com o auxílio do perispírito,[ii] o intercâmbio entre os planos físico e espiritual, duas faces de uma só existência.

O sonambulismo é um estado de independência da alma, mais completo do que o sonho, que permite ao Espírito maior amplitude ainda de suas faculdades. A palavra sonambulismo origina-se do latim somnus = sono + ambulare = marchar, passear.[iii] No sonambulismo, o indivíduo, embora dormindo, levanta-se, caminha, movimenta-se e pratica atos próprios de sua vida habitual com relativa segurança e perfeição, procedendo como se estivesse acordado. Entretanto, ao despertar, geralmente, o sonâmbulo não se lembra do que fez, enquanto se encontrava nesse estado.

O sonambulismo pode ser natural ou magnético. Não há diferença entre ambos, a não ser pela forma como se dão: um acontece espontaneamente; o outro é provocado, artificialmente, por meio de indução hipnótica ou magnética.

O sonâmbulo age sob a influência de sua própria alma e exprime o seu próprio pensamento. Enquanto estiver em transe, o sonâmbulo tem idéias, em geral, mais precisas do que no estado normal, seus conhecimentos são mais amplos, porque tem livre a alma, o que lhe permite o afloramento mais ostensivo de sua bagagem psíquica, acumulada durante as encarnações, e que, de ordinário, permanece abafada pelo corpo físico. Eventualmente, o sonâmbulo também pode se comunicar com Espíritos.[iv] Neste caso específico, temos no sonambulismo uma variedade da faculdade mediúnica.

O Espírito age como sonâmbulo, quando, preocupado com uma coisa ou outra, necessita fazer algo, cuja prática exige a utilização do corpo físico. Gabriel Delanne (1857-1926), notável pesquisador das ciências psíquicas, narra o seguinte fato:

(...) um jovem padre que se levantava todas as noites, ia à escrivaninha, compunha sermões e tornava a deitar. Alguns de seus amigos (...) uma noite em que ele escrevia, como de costume, interpuseram um grosso cartão entre seus olhos e o papel. Ele não se interrompeu, continuou a redação, e, terminada esta, deitou-se, como de hábito, sem suspeitar da prova a que fora submetido (...) Quando ele terminava uma página, lia-a alto, de princípio a fim. (Se se pode chamar leitura esta ação sem o concurso dos olhos). Se lhe desagradava alguma coisa, ele a retocava e fazia as correções, em cima, com muita exatidão. (...) É a visão sem os olhos. (...) isso nos prova que há nele uma força que seguramente o dirige, que age fora dos sentidos, numa palavra, que a alma vela quando o corpo dorme.[v]

Apesar dessa desenvoltura com que o sonâmbulo age, existem riscos para ele e que podem ser prevenidos, sobretudo se for criança: evitar camas altas, instalar grades nas janelas, retirar do alcance objetos cortantes ou pontiagudos que possam ferir.

Durante o transe, o sonâmbulo pode sofrer interferência de Espíritos obsessores, por meio de técnicas hipnóticas, que influenciam no comando da atividade mecânica do seu corpo físico. Por isso, recomenda-se também às pessoas sonâmbulas, sejam adultos, sejam crianças, a oração antes do sono, com vistas a obter a proteção dos bons Espíritos. A prática do bem, a vivência harmônica em família, à luz dos ensinos do Cristo, o Evangelho no Lar, também constituem excelente terapêutica preventiva.

Seria realmente perigoso à saúde do sonâmbulo despertá-lo durante o transe? Não há nenhuma evidência científica dessa afirmativa, que encontramos no rol do imaginário popular. O mesmo cuidado que temos ao acordar o não-sonâmbulo devemos ter para despertar o sonâmbulo, sobretudo se este estiver em movimento. Quase todas as pessoas, ao serem interrompidas, bruscamente, em seu sono, têm como reação, num primeiro momento, o susto ou a desorientação. Se por ventura nos depararmos com uma pessoa em transe sonambúlico, é recomendável direcioná-la, cuidadosamente, ao leito, sem necessidade de despertá-la, a não ser que seja estritamente necessário.

A dupla vista ou segunda vista ocorre quando o Espírito se desdobra, sem que o corpo esteja adormecido. Nesse estado, a pessoa vê, ouve e sente além dos limites dos sentidos humanos, podendo, inclusive, ter pressentimentos. Durante a ocorrência do fenômeno, o indivíduo, embora consciente, apresenta um estado físico alterado, com o olhar vago, como se olhasse sem ver.[vi]

A faculdade, na dupla vista, é permanente, mas não o seu exercício. Nos mundos mais elevados, a dupla vista é faculdade permanente, para a maioria dos habitantes, cujo estado normal pode se comparar ao dos sonâmbulos lúcidos.

A bibliografia espírita é farta de exemplos de casos de dupla vista, como os relatados por Kardec em A Gênese: entrada de Jesus em Jerusalém; beijo de Judas; e vocação dos apóstolos.[vii] Outro exemplo clássico é o relatado pelo astrônomo e escritor espírita francês, Camille Flammarion (1842-1925):

O professor Boehm, que ensinava matemática em Marburg, estando uma noite com amigos, teve de repente a convicção de que devia regressar à sua casa (...). Chegado à sua morada (...) sentia-se obrigado a mudar o seu leito de lugar. Por mais absurda que lhe parecesse esta imposição mental, entendeu que a devia cumprir, chamou a criada e com o auxílio dela colocou a cama do outro lado do quarto. Feito isto, ficou satisfeito e voltou para junto de seus amigos e acabar o serão. Despediu-se deles e às dez horas, voltou para casa, deitou-se e adormeceu. Foi despertado, durante a noite, por grande fragor e verificou que grossa viga tinha desabado, arrastando uma parte do teto e caindo no lugar que o seu leito havia ocupado.[viii]

A segunda vista acontece, com mais frequência, de forma espontânea do que por efeito da vontade, porém, é suscetível de desenvolver-se pelo exercício ou diante de certas circunstâncias que põem em perigo as pessoas, como no caso de crises, calamidades e grandes emoções. É a Providência Divina sempre a nos oferecer meios de nos proteger e de nos fazer superar as dificuldades do caminho.

O êxtase é a emancipação da alma no grau máximo, sem, todavia poder ultrapassar certos limites, que ela não poderia transpor sem quebrar totalmente os laços que a prendem ao corpo. Conforme a evolução do extático, cuja lucidez é ainda mais acentuada, ele pode vislumbrar faixas espirituais superiores, em que lhe é dado haurir de uma paz e de um bem-estar inexprimíveis.[ix]

Kardec traz um exemplo de êxtase, que sucedeu com o famoso compositor italiano de música religiosa, Pergolesi, cujo fato foi relatado pelo Sr. Ernest Le Nordez:

(...) Na sexta-feira santa, Pergolesi acompanhou a multidão. Aproximando-se do templo, parecia-lhe que uma calma, há muito desconhecida para ele, se fazia em sua alma e, quando transpôs o portal, sentiu-se como que envolto por uma nuvem ao mesmo tempo espessa e luminosa. Logo, nada mais viu (...), ouviu como um concerto longínquo de vozes melodiosas, que insensivelmente dele se aproximava (...). Mas, enquanto sua alma, arrebatada no êxtase, bebia a longos sorvos as harmonias simples e celestes desse concerto angélico, sua mão, como que movida por força misteriosa, agitava-se no espaço e parecia traçar, mau grado seu, notas que traduziam os sons que o ouvido escutava. Pouco a pouco, as vozes se afastaram, a visão desapareceu, a nuvem se desvaneceu e Pergolesi viu, ao abrir os olhos, escrito por sua mão, no mármore do templo, esse canto de sublime simplicidade que o devia imortalizar, o Stabat Mater, que desde esse dia todo o mundo cristão repete e admira. O artista ergueu-se, saiu do templo, calmo, feliz e não mais inquieto e agitado. Mas nesse dia uma nova inspiração se apoderou dessa alma de artista (...).[x]

Esse aspecto sublime do fenômeno, porém, não isenta o extático dos dissabores da perturbação, por influência de entidades inferiores, se se deixar levar pela invigilância. Essa é uma das razões pelas quais se deve julgar com muito critério revelações espirituais que venham por meio do extático ou de qualquer outro médium.

Enfim, o sonambulismo, a dupla vista e o êxtase constituem variedades de fenômenos que repousam sobre uma mesma causa – a faculdade de desdobramento do Espírito, que se produz graças às propriedades e às irradiações do fluido perispirítico.

Como vimos pela descrição dos exemplos, a natureza espiritual do ser humano é ainda pouco estudada e, consequentemente, bastante desconhecida. Pesquisadores da área psicológica têm encontrado no exame desses fatos a prova irrefutável da existência e da independência da alma, derrubando mitos e superstições e levantando o véu das leis naturais que encobrem fatos até então tidos por milagrosos ou sobrenaturais.

* Artigo publicado na "Revista Reformador" n. 2.157, ano 126, dezembro de 2008, p. 22-24.

 

[i]               KARDEC, Allan.  O Livro dos espíritos. 72ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1992. Questões 425-455.

[ii]              –. A Gênese. 34ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1991. Cap. XIV, parágrafos 22 a 28, p. 288-293.

[iii]              SANTOS, Dr. José Roberto Pereira dos. Entrevista publicada no Jornal Folha Espírita, de março de 2005.

[iv]              KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. 61ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1995. Cap. XIV, parágrafos 172-174, p. 215-216.

[v]              DELANNE, Gabriel. O espiritismo perante a ciência. 3ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1995. Cap. II (segunda parte), p. 93.

[vi]              KARDEC, Allan. Obras póstumas. 22ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1987. Cap. IV (primeira parte), parágrafo 28, p. 54-55.

[vii]             –. A gênese. 34ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1991. Cap. XV, parágrafos 5 a 9, p. 312-315.

[viii]            FLAMMARION, Camille.   F A morte e seu mistério. 6ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2004, vol. I, cap. VIII, p. 231. Apud “Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita”, Programa Complementar, Tomo único. 1ª tiragem, FEB, 2005, p. 320.

[ix]              KARDEC. Allan. Obras póstumas. 22ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1987. Cap. IV (primeira parte), parágrafos 29 a 31, p. 55-56.

[x]              –. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos. Ano XII. Fevereiro de 1869. 1ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Visão de Pergolese, p. 85-86.

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